Comentários sobre o Paradoxo do Comediante, de Diderot.

Erick Monteiro
13 min readApr 28, 2020

“Não vos expliqueis nunca se quereis vos entender”

Diderot, autor do Paradoxo do Comediante.

O paradoxo do comediante começa por um diálogo entre dois interlocutores: fazem considerações a respeito do teatro e do ofício do comediante - o ator. A primeira consideração feita no texto diz respeito a necessidade de aprovação, de admiração como garantia de aprazia ou mesmo de amor. O primeiro interlocutor prefere calar sua opinião crítica quanto ao trabalho da obra de um amigo em comum com o segundo interlocutor para que assim permaneça amigo de ambos, sem que sua opinião interfira na relação de amizade. O segundo interlocutor e o amigo defendem a sensibilidade do ator como fonte de sua inspiração. O segundo interlocutor compara-o a história de um autor que preferiu não ser assistido por sua amada no dia de estréia de sua obra com medo de que, sendo sua obra não apreciada, ela pudesse o amar menos.

Assim colocado, o primeiro interlocutor considera que a obra de um comediante, antes de mais nada, não pode estar contida apenas no texto, mas sim nas entrelinhas. Na sutileza que o comediante tem ao perceber o mundo e ao demonstrar-se conhecedor do coração humano. Por assim dizer, o segundo ponto defendido pelo primeiro interlocutor diz respeito a um novo pensamento em torno do ofício do ator, já que este não está mais subordinado ao texto, mas o texto sim está subordinado ao ator. O ator é elevado a uma nova categoria teatral não textocêntrica, pois este conhece (determina) a interpretação e a apropriação de um texto a partir de uma reflexão analítica e distanciada. Para ele o comediante é um ser detestável, ao supor que ele deve perceber o mundo de forma mais distante e racional. De outra forma o comediante estaria esgotado e não poderia oferecer uma reação emocional compatível a cada vez que representasse. Afinal — se ele agisse como ele próprio sente, como poderia não ser ele?

“Ao passo que o comediante que representar com reflexão, com estudo da natureza humana, com imitação constante segundo algum modelo ideal, com imaginação, com memória, será um e o mesmo em todas as representações, sempre igual, perfeito; tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado em sua cabeça, não há em sua declamação nem monotonia, nem dissonância.” (DIDEROT, Página 163)

O comediante é antes de mais nada um cético que pensa as situações a partir de uma perspectiva externa (contraste isso a técnica de Stanislavski), que o permite construir sátiras e ironias. Isso é dado como vestígio a partir do exemplo dado, no qual: um comediante pode se apropriar de um texto e através de sua entonação, gesto e fisionomia mudar completamente o sentido da palavra escrita. (Agora lembrem-se do contraste complementar entre Brecht e Stanislavski) Ele fala da desconfiança de uma mediocridade constante que relaciona-se com o fato de que uma frase possa conter em si sentidos opostos. O ator está sempre disposto a ser um cético, uma espécie de advogado do diabo que observa as coisas a partir da perspectiva de um contraponto, um olhar sarcástico sempre em busca de contradições no discurso e incongruências. O ator deve dar margem a uma interpretação aberta, ao manter em tensão enigmática o significado das palavras.

Dá como exemplo a relação entre o ator francês e o inglês com um mesmo texto e sobre como ambos abordam esse texto a partir de perspectivas pessoais, que carregam em si uma bagagem cultural, sexista, temporal e de classe. Características essas que dariam a cada um a noção subjetiva carregada por um sujeito individual, ou que nesse caso caracterizam grupos que preservam o seu ponto de vista, seus prismas e interpretações próprias ao se apropriarem da obra a partir de uma visão quase que regional (Cultural e personalista).

O texto alude aos sentidos distintos presentes em uma única obra. Em suas palavras: ambos enterrados sob um mesmo signo, pois todo discurso produz em si próprio um contra discurso. O comediante é antes de mais nada cético e racional o suficiente para desconfiar da cultura. Ele reconhece o olhar individual e enxerga as coisas a partir de um ponto de vista impessoal, geralmente correlacionando-o a razão e a moral para gerar uma espécie de reflexão amoral, pois o comediante seria cético o suficiente para questionar a própria moral.

“Acho necessário que haja nesse homem um espectador frio e tranqüilo; exijo dele por conseqüência, penetração e nenhuma sensibilidade.” (MOLIERE. Página 164)

A alma do comediante (:do ator) é quase amoral e desconfia das verdades absolutas e dos dogmas pragmáticos. Desconfia dos excessos de sentimentos e da virtude. Ele é um espectador assíduo do que acontece ao seu redor, que observa analiticamente e com sangue frio. Ele fala do ofício do comediante em fazer rir de si mesmo.

É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que vos faz rir, quer desses importunes originais, de que fostes vítima, quer de vós mesmos. É ele quem observava, e quem traçava a cópia cômica, quer do importuno, quer de vosso suplício. (MOLIERE, Página 164)

Outra questão importante é a possibilidade do auto reconhecimento que o teatro possibilita. No texto dado pelo primeiro interlocutor, Diderot faz um paralelo que só poderia ser analisado a partir do ponto de vista cético do comediante.

“Há diferença entre o interesse que assume um conto de pura invenção e o interesse que vos inspira o infortúnio de vosso vizinho.” (DIDEROT, Página 166)

De que ele se comove muito mais com o que está sendo imitado pelo ator que faz racionalmente sua pantomina (com a ficção/mentira) do que pelo acontecimento real por si próprio (quando acontece na vida). As pessoas vão ao teatro prontas para, numa história passível de seu caráter imaginário, suprir a necessidade de identificação sentimental que precede a empatia, livre do julgamento e da moral, ao analisar o caso de um vizinho. Por exemplo, é mais fácil compreender e entender os sentimentos de um assassino em fúria ou de um adúltero através do teatro do que julgando-o na vida real.

A questão em voga é o embate entre como o ator deve encarar o seu ofício, a partir de uma perspectiva fria e insensível. Sendo assim, ele deveria dominar a maneira de imitar, a arte da pantomima para criar uma ilusão que só deve existir para o público. O ator é um grande mentiroso, um grande cético, ele não deve sentir, mas fingir o sentimento em favor da encenação.

“O ator escutou-se durante muito tempo a si mesmo: é que ele se escuta no momento em que vos perturba, e que todo seu talento consiste não em sentir, como supondes, mas em expressar tão escrupulosamente os sinais externos do sentimento, que vós vos enganais a este respeito.” (DIDEROT, Página 165)

Este domínio permitiria ao ator transformar a obra num espaço de interesse comum para ser compartilhado com o público, que transpassaria a simples imitação. O ator não deverá apenas reproduzir, mostrar as coisas como são na vida real, na natureza, mas imbuir em suas ações no palco discursos e movimentos idealizados.

A atitude do ator deve muitas vezes ser exagerada ao ponto de criar uma comoção, facilitar uma leitura emotiva que possa criar no espectador uma empatia. Justamente por essa necessidade de empatia o ator deve preservar a dignidade do homem no palco, nesse aspecto preservando as atitude compreensíveis de sua humanidade de forma honrada, elegante. (O teatro é um humanismo?)

Ele pretende, dessa forma, aproximar os espectadores na sua forma de poetizar a vida, a fim de apreender os momentos sublimes que na vida passam de forma tão mais despercebidas e que o espectador pode atingir tão mais facilmente, ao presenciar no palco a falsa comoção que o levaria a uma catarse, um insight em busca do ideal de um auto reconhecimento.

“me falais de uma coisa real, e eu vos falo de uma imitação; vos me falais de um instante fugaz da natureza, e eu vos falo de uma obra de arte, projetada, interligada, que tem seus progressos e sua duração.” (DIDEROT, Página 168)

Sendo assim o ator deveria evitar a monotonia como sendo a manutenção de um uníssono, da especificação de um tipo. Esse ator deveria optar pela não especialização e estar preparado para desempenhar todos os tipos de papel, pois as peças se fazem para os atores e não os atores para os tipos de peça.

Esse tipo de afirmação é quase uma descoberta iluminista nos domínios do teatro, ao elevar o ator à presença antropológica do homem em detrimento da verdade inabalável do texto, e sua capacidade de interpretar um texto racionalmente, ceticamente e sob sua perspectiva. Sendo assim a ação está subjugada ao ator, e não o ator subjugado a ação. Paradoxalmente, o texto abre e desdobra-se. Dessa forma deve existir entre atores o que podemos chamar de reciprocidade. Atingida através de sangue frio e dedicação nos ensaios afim de estabelecer um equilíbrio entre os atores, de forma que estes possam entrar num ritmo de pantomima e continuidade, onde um ator está em sintonia com o feedback do outro. Esse ator deve atingir uma maturidade na qual seu sangue já não está efervescido ou suas entranhas inflamadas, mas quando vê as coisas a partir de uma maturidade emocional que o permita o domínio da alma humana.

Dado o exemplo de uma cena entre dois comediantes num trecho do Despeito Amoroso, de Molière, o primeiro interlocutor fala da habilidade da atriz em dominar a pantomima de emoções contrastantes em uma cena em que esta é hipócrita, fingida em sua maneira de fazer-se de vítima perante o marido e o amante, de responder coisas completamente opostas e colocar-se num lugar de vítima, de mocinha, de vilã, de contraste.

“Será que sua alma pôde experimentar todas essas sensações e executar, de acordo com o seu rosto, esta espécie de gama? Não creio absolutamente.” (DIDEROT, Página 172)

Como exemplo toma a careta de Garrick, que podia dominar toda uma gama de ações, e do autor Sedaine, que leva as práticas em O Filósofo sem Saber, a teoria de Diderot. Que considera-o um homem gênio, verdadeiro observador da alma humana e que estabelecendo o domínio de suas emoções torna-se superior ao homem comum e logo assim, um sábio.

Voltando ao exemplo do advogado do diabo, do homem sábio que não sucumbe a emoção, o primeiro interlocutor exemplifica que ao defender um amigo com problemas financeiros para o irmão rico que foi por ele prejudicado, em vez de se compadecer com a causa do mal feito, recobrou suas emoções a fim de advogar a favor do amigo malfeitor. Não importava o mal que houvesse feito, necessitava de ajuda. Em seguida, ele discorre sobre as vantagens do domínio dos sentimentos ao falar de um homem apaixonado que reage emocionalmente e põe tudo a perder, enquanto que um outro, mais frio consegue calcular suas ações a ponto de agradar e suceder em seu cortejo. Afirma que o homem sensível serve de modelo para que o frio possa observá-lo e de suas atitudes adicionar ou subtrair para um comportamento melhor.

“É quando a grande dor passou, quando a extrema sensibilidade está amortecida, quando estamos longe da catástrofe, quando a alma está apaziguada, que nos lembramos da aventura eclipsada, que somos capazes de apreciar a perda sofrida, que a memória se reúne a imaginação, uma para descrever e outra para enxergar a doçura de um tempo passado, que nos dominamos e falamos bem.” (DIDEROT, Página 174)

Sob esse ponto de vista ele traz de volta a idéia de idealização, ou aperfeiçoamento da encenação. Tira como exemplo tartufo, e é perguntado pelo segundo interlocutor sobre qual é a diferença entre um tartufo e O tartufo. Ao responder, o primeiro interlocutor fala do caráter geral que representa o tartufo e não do particular que representa um tartufo ao dizer que são só traços mais gerais e mais marcantes que importam, não o retrato específico de algum deles.

Dessa maneira a arte eleva-se à uma capacidade conciliadora que interfere na sociedade a partir do momento que ela generaliza, idealiza o todo, sendo mais claramente exemplificado através da frase que diz que "A sátira persegue um vicioso, a comédia persegue o Vício.” Esse modelo em busca de uma universalidade é ideal no sentido em que corrige, aprimora o elemento presente na natureza a fim de torná-lo apreciável. (relacionem a função da obra de arte [expurgar: purifucar: catarse] na Poética de Aristóteles)

“Tomemos uma arte em sua origem, a escultura por exemplo. Ela copiou o primeiro modelo que lhe apresentou. Viu em seguida que havia modelos menos imperfeitos, que preferiu. Corrigiu os defeitos grosseiros, até que, por uma longa seqüência de trabalhos, atingiu uma figura que não existia mais na natureza.” (DIDEROT, Página 176)

Ao autor caberia imaginar o grande fantasma sentimental de um personagem aterrorizado pelos seus acontecimentos e escrever tipos que caberiam ao ator interpretar. Caberia ao poeta sentir mais que ao comediante, e ao comediante conceber esse sentimento mais fortemente, sem de fato senti-lo. Volta-se ainda aos gregos antigos, que pretendiam através do teatro melhorar seus cidadãos. Retoma a Poética de Aristóteles, fala do ofício do ator e da função do teatro de dar a um tema eloqüência, meditá-lo sob todos os primas possíveis de modo que o comediante não pode ter um acorde que lhe seja próprio e sim tomar o acorde o tom que melhor convém.

O primeiro grande paradoxo do comediante diz respeito a sua disponibilidade para representar a emotividade sendo frio e racional para não sentir a emoção ele mesmo, e sim para reproduzir a sensibilidade que lhes falta. Quanto ao caráter e personalidade do comediante, através do primeiro interlocutor, Diderot defende que falta ao ator a sensibilidade que ele compensa com uma profunda observação e domina suas ações através da mimese. Para ele ninguém se torna comediante por escolha ou por gosto a virtude, e apropria-se do teatro como recurso para exercitar sua observação. Os atores não teriam caráter porque, ao representar todos, perderiam aquele que a natureza lhes deu, e se tornam falsos. O ator é vaidoso, invejoso. Não é a sensibilidade que lhes é base de caráter ou a razão de seu êxito e que se esses fossem cidadãos honrosos, não seriam capazes de transportar para o palco o lugar da reflexão sobre o bom gosto e os bons costumes.

“É sobretudo quando tudo é falso que se ama o verdadeiro, é sobretudo quando tudo está corrompido que o espetáculo é mais depurado. O cidadão que se apresenta a entrada da Comédie deixa ai todos os seus vícios, a fim de retomá-los apenas na saída. Lá dentro ele é justo, imparcial, bom pai, bom amigo, amigo da virtude; vi muitas vezes ao meu lado malvados profundamente indignados contra Ações que não deixariam de cometer se se encontrassem nas mesmas circunstâncias em que o poeta situava a personagem que aborreciam.” (DIDEROT, Página 182)

Dentro do teatro o espectador é um cidadão consciente, respeitoso e que pode assim refletir a respeito da vida, expurgar os males da sociedade, separar o que é mal, nocivo e aperfeiçoar sua idéia que tem do que seriam as grandes virtudes da sociedade. Que um ator insensível e próximo da crueldade seja o ser incumbido dessa função é o segundo paradoxo colocado no texto, ou uma continuação, uma complexificação do primeiro. A sensibilidade verdadeira é diferente da apresentada no palco, caricaturas sujeitas às regras de convenção. De outra forma, não seria possível oferecer a sociedade a apreciação do que se passa dentro de nós.

Esse ator deveria projetar o que observou e adaptá-las ao palco, da mesma forma que a palavra do poeta. Depois de exemplificar essa teoria através de uma comparação entre o texto de Sófocles e o discurso de Régulo, o primeiro interlocutor conclui que para ser grandioso é necessário abdicar de uma sensibilidade própria, abster-se de si em função e um bem maior, dominar as emoções a fim de tomar a atitude mais sábia, mais pensada em prol de um bem menos tolo do que o motivado por emoções pessoais. Fala dos atores jovens que só depois de um ano estudando seus personagens, quando já estavam cansados e desgastados da emoção impulsiva, da vivacidade do entusiasmo e que se tornavam blasés. É que estabeleciam uma identificação com seus personagens, e que se estes permanecessem eles próprios, seriam limitados a personagens próximos de suas sensibilidades, seriam esnobados pelo público pela estreitidão de suas limitações emocionais e estariam exaustos da sobrecarga emocional. Estariam presos em si próprios, desiguais e medíocres (Cuidem da saude emocional, queridos atores).

O segundo interlocutor, ao defender a sensibilidade do ator, é perguntado; — Ora, se assim fosse, o espetáculo não deixaria de ser um prazer e seria um suplício para vós? — Pois dessa forma seria cruel, seria verdade o que acontece no palco e o espectador não poderia ser expurgado através de um simulacro que o bastaria, mas seria sugado pela vivacidade, e logo uma atitude de uma catarse conciliadora através do distanciamento não lhe seria possível.

“O homem sensível fica a mercê de seu diafragma para que seja grande rei, grande político, grande magistrado, homem justo, profundo observador, e conseqüentemente, sublime imitador da natureza, a menos que possa esquecer-se e distrair-se de si mesmo, e que, com a ajuda e uma imitação forte, saiba criar, e, de uma memória tenaz, manter a atenção fixada em fantasmas que lhe servem de modelos; mas então não é mais ele que age, é o espírito de um outro que o domina” (DIDEROT, Página 185)

(Sugiro pesquisar o inconsciente coletivo de Jung)

Calados, os interlocutores caminham. O segundo interlocutor desconectou-se do que está sendo dito, imerso em seus próprios pensamentos, o primeiro convencido de que os dois permaneceram imutáveis em suas idéias, conclui que: aquilo que o próprio sentimento, que a própria paixão não consegue fazer, a boa imitação o faz, que é levar aos outros esses sentimentos. (!) Finaliza, numa máxima paradoxal que resume sua opinião diante do amigo; É a ausência, conhecimento e controle da sensibilidade e um bom domínio de sua imitação que a incita nos outros.

Notem a escolha de Diderot por escrever esse texto através do diálogo entre dois interlocutores ao invés do monólogo de um narrador, de duas vozes dissonantes que expõe o conflito e a dúvida que surge diante das afirmações cunhada pelo outro (Tese e antítese).

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