O mito do homem branco como pertencente a "raça" caucasiana.

Erick Monteiro
7 min readDec 9, 2019

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Os Caucasianos da Géorgia. O país, não o Estado sulista dos EUA.

Hoje li pela manhã o artigo da ótima Carol Bensimon para a edição 156 da Revista Piauí sobre a lei na California que proíbe a discriminação contra penteados afro. O artigo segue bem contextualizado com dados pertinentes levantados sobre o tema, bem como o testemunho de mulheres negras sobre o assunto. Seus dois últimos parágrafos trazem considerações esperançosas de Carol sobre padrões de beleza menos eurocentricos e e a resposta (sic)* da industria à nova demanda por parte dos consumidores.

O que me chamou atenção, ao final do artigo, foi a escolha de Carol de usar (o que por consequência perpetua) a expressão "padrão caucasiano de beleza" sem com isso questionar o próprio termo ~caucasiano~ que por si é uma antítese de sua própria conclusão e que ainda hoje perdura na crença estadounidense sobre a existência de raças humanas, apesar de seu caráter pseudo-científico e sem que esse tenha indícios suportados pela história da imigração humana e pela própria ciência genética.

É verdade que em seu artigo, Bensimon em momento nenhum falou de raça, mas o tal padrão caucasiano a que se refere alude e reforça diretamente o conceito. Raça são inexistentes sob o ponto de vista biológico. É um conceito ultrapassado, preconceituoso e obsoleto que permanece sob a égide dos discursos de controle e manutenção de poder.

A ideia do branco europeu como sendo pertencente a raça caucasiana surgiu da teoria de que o homem branco surgiu na região do Cáucaso, onde fica o pequeno país da Geórgia, que não é o estado americano. Se pensarmos a região do Cáucaso como o berço do homem branco, especificamente no sentido germânico anglo-saxão entendido pelos americano, aquele idealizado como o de cabelos louros e olhos azuis, tampouco faz sentido. São dois mitos que devem ser refutados para o bem estar social e advento de uma ciência atualizada com as descobertas científicas atuais e atual patamar da consciência humana.

No sentido antigo do termo, quando ainda vinha imbuído de teorias científicas, o caucasiano seriam todos aqueles conjunto de povos que habitam a Europa, Oriente Médio e norte da África. Muito diferente da forma entendida pelo americano, que chama de caucasiano o estereótipo do norte europeu (sendo o germânico o ideal supremo de raça evoluída). O homem do Cáucaso está muito mais perto fenotipicamente do árabe do que do europeu nórdico. Curiosamente, nos questionários sobre raça nos Estados Unidos, os árabes são uma categoria a parte.

Apesar de ser verdade que a pele clara surgiu fora da África, em climas mais temperados e períodos glaciais, há indícios de que neandertais tenham desenvolvido a pele clara antes do Homo Sapiens. Os neandertais sim eram uma outra espécie humana, ainda assim de distancia genética menor do que aquela que há entre o cavalo e o jumento. Próxima o suficiente para que o homo sapiens pudesse se reproduzir com essa extinta espécie. Não para por ai, o homo sapiens atual (ou seja, nós) também carrega(mos) traços genéticos de outras espécies humanas, como a do homo erectus e denisova.

A miscigenação sempre fez parte da história da evolução humana e ajudou para que perseverassem os genes que melhor se adaptassem as duras condições as quais fomos submetidos. A miscigenação nos dá melhores chances de sobreviver a seleção natural, como num jogo em que o player adquire diferentes ferramentas ao longo do caminho para ajudar em sua jornada.

O homo sapiens existe há aproximadamente 200 mil anos e a pele branca surgiu recentemente, há apenas 8 mil anos, em diferentes lugares e por uma combinação de códigos e variantes genéticos. Esse genes associados a pele clara perseveraram por determinação ambiental, já que melhor de adaptavam as condições, uma vez que altas latitudes são mais frias e possuem menos luz solar. A pele branca permitiu a absorção de vitamina D, por exemplo. No entanto, no atual estado de aquecimento global, são os seres humanos de pele negra que têm a vantagem e a melanina necessária para a proteção contra os fortes raios solares e raios ultravioletas.

Na Europa, há um curioso (e racista) ditado popular, que diz que "Abaixo dos Pirineus Tudo é África". Isso porque as cadeias de montanha isolaram a península ibérica, onde povos celtas, os "indígenas" europeus, se miscigenaram com outros povos que navegavam pelo mediterrâneo (como gregos e fenícios) e com povos do norte da África.

Curiosamente, durante o império Romano que uniu o continente, o homem mediterrâneo (de Roma) era considerado o ideal, enquanto os germânicos eram vistos como bárbaros e os vastos povos celtas, de cultura considerada rudimentar, foram (des)integrados na cultura Romana, de forma que seus costumes e línguas foram diluídas até restarem poucos vestígios. Apesar de geneticamente majoritários, seguem invisivelmente presentes, muito similar ao que acontece na cultura Africana no Brasil. Os negros escravizados para o Brasil de várias partes da África, de grande representação numérica, perderam sua autonomia, seus nomes e sua língua, mas seus costumes ficaram presentes na música, culinárias, hábitos culturais e religiosos. Por isso, assim como a miscigenação é comum no Brasil (com seus vários tons de pele e termos racistas, como mulato, de mula), temos diversos sincretismos que ligam santos católicos às divindades africanas.

O preconceito racial serviu para justificar os maiores crimes contra a humanidade; como o nazismo, a diáspora e holocausto de negros escravizados, a exterminação indígena na época das invasões, a xenofobia vigente contra imigrantes da Síria, o Muro de Trump, a visão de Bolsonaro sobre a cultura de povos indígenas e a política de morte nas favelas, incluindo o assassinato de Marielle e a morte de jovens no baile funk de Paraisópolis em São Paulo por ação da polícia.. Tudo isso é na verdade fruto de uma grande ignorância, no qual o desejo de dominar pelo poder e o medo do diferente é usado como armas que trouxeram sofrimento, guerras e conflitos que se perpetuam e recriam até hoje.

Essa ignorância desconhece a complexidade invisível das miscigenações humanas atuais. O que entendemos tradicionalmente por alemão, por exemplo, não é composto só pelo povo germânico, é uma mistura com povos celtas que viveram na região, e em menor escala, com povos mediterrâneos (ao sul) e eslavos (ao noroeste). Se considerarmos os alemães que nascem hoje em dia, filho de casamentos com novos imigrantes, esses povos permanecem, como sempre estiveram, em processo de mistura com povos oriundos de todos os lugares do globo. Os descendentes de alemães no sul do Brasil são hoje miscigenados com outros povos brasileiros, descendentes de portugueses, italianos e negros. Essa ideia de pureza racial é uma balela e uma idiotice tremenda.

Os exames de DNA vieram para provar que somos todos miscigenados e que todos os povos são produtos do encontro de diferentes culturas pelas histórias das imigrações humanas. A pergunta é quando aconteçam essas miscigenações. Há duas gerações atrás? Quando um de seus (vamos imaginar) quatro avós imigrou do Líbano para o Brasil? Ou há 10 gerações, quando você tinha 1024 ancestrais? Nesse exemplo, pelo lado do tal avô libanês, você teria 256 ancestrais vindos do Líbano, e sabe lá quais deles, há aproximadamente 300 anos atrás, não imigraram para o Líbano de outros lugares? Poderiamos atestar a origem de todos os outros ancestrais?

Poucos anos atrás brancos de olhos e cabelos castanhos vinham em segundo lugar na hierarquia da branquitude. Essa construção social sobre raça é uma de várias crenças limitantes cheias de ideologia que serve a um discurso de poder vigente e nos torna agentes da Matrix, como o Mr. Smith (ou a PM, na vida real). Escravos lobotomizados, manipulados para reproduzir com violência discursos que vão contra nós mesmos, nossa consciência e dignidade pessoal. Quem aprende a se respeitar, respeita o próximo.

Voltando a Carol Bensimon, que me toca profundamente por tudo que compartilhamos culturalmente, de nossa geração, experiências e visões de mundo, incluindo a mea culpa semiconsciente e autocrítica de termos sido formados pelo ideal estadounidense do consumo e pelo sonho americano (eu ainda por cima vivo em Miami!). Enfim — voltando a Carol — ela me suscitou e inspirou, por um pequeno deslize em seu suave discurso, a constatar sobre a importância da linguagem, das palavras e do peso que elas carregam. A intrínseca relação entre signo e significante, e como esse exemplo da terminologia "caucasiano" prova de que a escolha das palavras que usamos carregam sentidos e precisam ser reavaliados. Não podemos ser escravos das palavras.

Está mais do que na hora de ouvirmos os pedidos de ativistas negros e pararmos de usar palavras e termos racistas no nosso dia a dia. Palavras simples como criado mudo ou mercado negro. Mesmo os termos dúbios que podem ter surgidos apenas por associar o preto à noite (e logo ao medo e ao desconhecidos) são termos dualistas que não nos servem mais. Pois, além de causar desconfortos reforçam um mundo binário e maniqueísta que não enxerga nuances e acaba domniado pela ignorância e medo. O diabo mora nos detalhes, e para isso a consciência é a chave de tudo. Só ela liberta.

Inception:

resposta (sic): para não desviar do assunto, gostaria de contextualizar o adendo do advérbio (sic) acima para relembrar que o capitalismo não apenas responde inocentemente as demandas de consumidores (dando assim a impressão de estar "a seu serviço"). Ele capta necessidades genuínas da população, nesse caso específico, o desejo de ser aceito e viver livre de preconceito, de não estar a margem do que é considerado ideal, e o esvazia de sentido, ao atrelar o cabelo afro a futilidade de cuidados, usos e penteados que se façam depender do produto vendido. Como se ao adquirir tal produto, o seu slogan ("macios", "sedosos", "deslumbrantes como uma deusa") se colasse no próprio cabelo. O que isso faz é subordinar o bem estar e a autoestima ao consumo de produtos que vendem desejos esvaziados de uma necessidade interior e subjetiva. Logo, o desejo genuíno de ser aceito volta às mãos do mercado e da publicidade que inflam vaidades fúteis e escravizam a população a necessidade do consumo sem que essa traga verdadeira satisfação. Se um só é aceito quando consome e se adequa, este está verdadeiramente livre para ser quem é ou precisa comprar a sua identidade? Essas questionamentos retóricos de ovo e galinhas não tem fins ou respostas definitivas, mas precisamos questionar, uma vez que indagações estimulam a busca por nossas próprias respostas, que estarão em constante processo de construção e desconstrução.

Ser ou não ser, eis a questão?

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