Si-mulacros: as invenções de si.

Subjetividade e narrativa na era das tecnologias digitais.

Erick Monteiro
26 min readNov 8, 2021

Ontem, domingo a noite, reassisti sonolento a primeira parte de 2001: uma Odisséia no Espaço, de Kubrick. Assisti maravilhado o agrupamento de mamíferos que representavam um bando de nossos ancestrais, não tão diferentes de outros grupos de primatas que hoje existem, sujeitos à proteção da vida em bando e ataques de predadores. Observei a reação daqueles animais ao misterioso (e fálico) monolito que surgia em meio ao Veld, a savana Africana. O que será isso? Uma indagação em aberto, uma charada a ser decifrada; a cara própria do mistério a ser desvendado pelo grupo de hominídios. O lançamento do símbolo como o fio indutor da própria consciência (e os correlativos originários: quem, quando, onde, o quê, para quê?) Um deles levanta, eréto, libera suas habilidosas mãos e com elas apanha um osso, seu corpo extendido pela ferramenta tornada arma (weaponized), e uma mudança na evolução se inicia, engatilhada (triggered) ao som da trilha épica de Thus Spoke Zaratrustra de Richard Strauss, em homenagem ao profético livro de Nietzsche. Não se pode separar a evolução tecnológica da evolução do homo sapiens.

Seguindo essa constatação, podemos sugerir que toda evolução por vir e as que já alcançamos, como as tecnologias digitais, estão inscritas no programa genético da espécie humana, pois remetem às origens da constituição do ser humano como tal, ou seja, quando teve seu primeiro processo de subjetivação. O surgimento da espécie humana é um movimento de autocriação (LEVY, 1996, p. 5); o princípio básico da construção de si como sujeito é o de pensar sobre si — olhar-se, como diante do espelho — e desprender de si a sua própria imagem (desvendar o monolito), como fazemos hoje com um avatar que controlamos. Dessa forma, podemos afirmar que a noção de sujeito se instaura na ideia de externar-se, colocar-se paradoxalmente fora dos limites do corpo-matéria, ato tornado possível através da comunicação possiblitada pela linguagem, que surge como primeiro aparato técnico. A fala é o lugar do artifício, uma atitude inerentemente simbólica, baseada no sistema de equivalência de signos, que existe também em um campo abstrato fora do emissor, ou mesmo da coisa, no plano virtual-abstrato.

O homem, animal desnaturalizado freudiano, abandona o limite de sua fisiologia, do corpo físico e dos impulsos instintivos do aqui-agora, e lança-se para fora; desenvolve-se com seu corpo numa relação que vai além do conceito evolutivo darwinista, o da adaptação através da seleção natural, para o de adaptação programada e proposital; de autotransformação. O corpo atravessado, entificado, modulado pela técnica dos objetos talhados em ferramentas, passa a mediar a relação que se estabelece entre homem e mundo (HEIDEGGER, 1927, p.27). Podemos associar logo de início o uso de tools, ferramentas criadas pelo homem desde que nossos ancestrais trapacearam a cadeia natural evolutiva ao usar a pedra lascada como extenção de seus membros, ganhando a função de cortar, ao desenvolvimento de outras ferramentas mais complexas, como os automóveis e aviões. Esses avanços tecnológicos, por exemplo, minimizaram as distâncias espaciais e temporais e permitiram ao homem ressignificar e redimensionar sua relação com o mundo ao moldar sua realidade, que está sempre processo de atualização (update). A técnica, originária na linguagem, na criação de ferramentas manipuláveis e no domínio do fogo, carregado em tochas, expandiu-se. Transmutada em tecnologia, incorporou sistemas simbólicos e evoluiu a ponto de sair do campo imediato táctil — atual — para o campo das potencialidades do virtual.

Tomemos o conceito de real postulado por Levy em seu livro “O que é virtual?” (1996: p. 5–12), como sendo tudo aquilo que existe (que ele chama de atual), mas também como interpretamos tudo o que existe (virtual). Ele chama atenção para a oposição enganosa entre o entedimento de que real se opõe ao virtual (real vs. virtual); que entende real como presença corpórea-sensorial-tangível e virtual como uma ausência de existência física, de ordem ilusória e abstrata.

O virtual não se opõe ao real, uma vez que real compreende a experiência cognitiva e os processos da consciência, aquilo que existe dentro e fora da mente. Mesmo a ilusão, nesse sentido, seria considerada real, uma vez que é verdadeira em si mesma, enquanto ente fictício, enquanto ideia. Por sua vez, a ideia, de campo simbólico, não é o mesmo que a coisa que ela representa.

(Isso não é o mesmo que dizer que virtual — entendido como força, potência — é o mesmo que ilusão, apesar da ilusão estar contida e ser uma das instâncias do virtual.)

O virtual opõe-se ao atual (corpo táctil), ambos contidos na experiência que chamamos realidade.

Deu-se a princípio em uma passagem do referente (a coisa), que através de seu significante (seu nome), leva ao seu significado (a ideia abstrata que explica, exemplifica ou ilustra coisa). Essa duplicação acaba por produzir uma tríade (e seria essa a alegoria filosófica da santíssima trindade?); entre a coisa e a ideia há a ligação entre elas, o elo, o nome que as une, que evoca; a palavra-mágica. A passagem do atual ao virtual elevada à potência que carrega em si a entidade inerente a seu ser; seu complexo problemático (?); a pergunta em aberto, a charada a ser decifrada, as questões que o movem, seus nós de tenções, de coerções, suas tendências e dimensões como parte essencial de sua determinação.

Acontece que o virtual é um sistema simbólico complexo autorreferente, ele funciona como espelho/esponja (a intersecção das teias de Indra, ou a sinapse, são ótimas alegorias/modelos). Ele não apenas é, ele ao mesmo tempo é e debruça-se sobre si mesmo, produz suas próprias virtualidades. (Ao ponto de essas duas coisas perderam o elo entre si e tornarem-se coisas diferentes e não mais correspondentes.)

Logo, o processo de virtualização não é uma desrealização, mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade, a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático. Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular. (LEVY, 1996: 7) Ou seja, o que vale não é simplesmente a coisa, mas como interpretamos, nomeamos, e jogamos com ela.

Isso posto, não é difícil concluir que o virtual, eventualmente liberta-se do referencial e torna-se algo que existe por si só, emancipado. (E como presságio, temos a figura do AI, a inteligência virtual que ganhará vida própria e nos aniquilará).

Para compreender a isenção e desprendimento do virtual de sua fonte tangível, sua evolução entre ente-subjulgado (que só existe em função de ou em relação à) para um território sem origem, usemos como exemplo a relação feita por Baudrillard quando fala do mapa que cobre o território. Nesse mapa, rico em detalhes, podemos fazer upgrades, projetar edifícios e planos urbanisticos, fazer modificações estruturais tão profundas de forma que a sua representação descola-se, evolui e tem uma outra força ontológica do que aquela da própria realidade. Chama-se o conceito dessa representação que ultrapassa o mapa de simulacro hiper-real, que liquida todos os referenciais e ressurge sob nova natureza no sistema de signos. “Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório.” (BAUDRILLARD, 1981: 9) (Assim opera o golem invocado pela vida própria que se faz em O Teatro e Seu Duplo de Artaud).

As reflexões acerca desse processo humano; de constituir-se como sujeito através da técnica — desde o artifício da linguagem e invenção das tools às tecnologias contemporâneas e que se pronunciam numa alvorada futurista fantástica — e da relação direta com o processo de virtualização como algo destinado a se desprender do referente, processos que carregam em si sua consciência e problemática, são o ponto de partida que recapitulam e fundamentam essa reflexão;

Essas questões suscitam o fazer artístico e nutrem as potências estéticas que hão por vir sob novas formas, resignificando o desdobramento de inquietações polêmicas, tais como a famosa pergunta de Oscar Wilde: A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Outros pontos(re)produzem desassossegos ontológicos em inédita instância: o reconhecimento da arte como uma entidade emancipada e autônoma; questões existencialistas do homem que pondera o desejo de vida defronte a morte, exprimida pelo Hamlet de Shakespeare: Ser ou não ser, eis a questão?, e desaguam no desejo fáustico de ultrapassar as limites impostos pelas condições humanas do copor biológico e a iminência de sua finitude, através dos avanços de manipulação e edição genética e da biocibernética que permite a troca de partes e atualizações constantes. (SIBILIA, 2014, p. 43). Em última instância, o desejo último que nos trnasmuta em Deuses imortais — transcender as mediações técnicas; aprender e apreender o todo; ser o todo: o desejo do nirvana, da plenitude da omnisciência atemporal, não localizada.

Ao levarmos em consideração as intersecções midiáticas, é partir dos parâmetros citados acima que pretendemos compreende tais fenômenos: como se dão e quais são as novas formas de subjetividade existentes e possíveis na esfera atual e na esfera virtual; como essas subjetividades, em que ser humano se expande e se virtualiza através da técnica, geram novos tipos de possiblidades e manifestações artísticas, cada vez mais híbridas e transversais; quais são as implicações e como isso se reflete no nosso imaginário coletivo e modifica estrutura, forma e conteúdo da narrativa que nos orienta e confere sentido a vida; como as transformações tecnológicas se relacionam às questões referentes à autoria e morte do autor, e, a partir disso, como os espectadores interagem com a arquitetura narrativa como experiência imersiva, que confunde os limites entre realidade e ficção (e a fundação dos conceitos amplamente difundidos na litetura mística que usa termos como co-criação) em que, de leitores e espectadores convertem-se; “tornam-se participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores passivos.” (RANCIÉRE, 2007, p. 3)

Partindo do pressuposto de que o ficcional é nada menos do que um simulacro autônomo de origem virtual, pretendo explorar esses fenônemos dentro da análise de filmes-objetos que tem os temas listados como problemática, cujo resultado se constrói a partir da integração de fazeres artísticos, que resultam em uma nova arte, próxima à ideia de Gesamtkunstwerk ou obra de arte total total Wagneriana. Especificamente em meio ao anuncio do Metaverso como futuro para o facebook, de devices como smartphones e óculos interativos com tecnologia de Smart objects conectados que nos levam à Realidade Virtual imersiva e trazem a virtualidade à Realidade Aumentada, e assim mudam o fazer artístico da literatura, relegada à condição de pinturas rupestres nas cavernas e pergaminhos, o teatro, como arte zumbi, um morto-vivo embalsamado num altar em forma de pirâmide, ao do cinema projetado, que ainda jovem, está em processo de virar Caduco.

“Cada uma destas artes se colocasse a mercê de uma ideia integradora, que transpasse a própria individualidade de cada arte” (PEREIRA, 1995, p. 7). É inegável , nesse sentido, que as manifestacões do espetáculo, essencialmente multimidiáticas, tornam-se cada vez mais aglutinantes e antropofágicas. Os objetos escolhidos para análise tratam, na temática de sua narrativa (não em seus formatos), os vários aspectos das questões das subjetividades, das narrativas e das tecnologias digitais em que pode ser explorados cada um desses questionamentos e possibilidades;

Sinédoque Nova Iorque

O filme Sinédoque Nova Iorque de Charlie Kaufman, de natureza metalinguística, usa o código teatral para decifrar, através do modelo, da minuatura, o próprio código da vida. Conta a história da vida de um diretor de teatro, Caden, que tenta reproduzir os acontecimentos de sua vida em um galpão, onde contrata atores para interpretar a ele próprio e as pessoas com as quais se relaciona. Obcecado com o sentido da sua existência e com a eminência da própria morte e o zaio que se prenuncia no fechar dos olhos, o diretor espetaculariza a própria vida em uma viagem auto-exploratória, em busca de uma experiência autêntica e verdadeira, cujo desdobramento é o de repensar qual é o teatro possível em uma sociedade em que “a vida cotidiana é ficcionalizada e estetizada com recursos midiáticos” (SIBILIA; 2012, p. 22). Dentro desse espetáculo do tempo real, no seu projeto — que em dado momento do filme considera chamar de “Simulacro” — o ator que interpreta Caden precisa de um ator para interpretar o ator que interpreta Caden ad infinitum, de forma que a narrativa funciona como um espelho que reflete-se em múltiplos espelhos, e que por sua vez moldam diretamente a vida real de Caden, que é muito mais um produto dessas reflexões do que produtor delas.

As fronteiras confusas entre o real e o ficcional se esvanecem ainda mais; o espelho reflete o espelho em um fluxo duplo e contínuo em que ambas esferas se contaminam ao ponto de não poderem ser mais separadas. Uma de suas atrizes, que, além de esposa do diretor, representa a si mesma (ZIZEK, 2003, p. 26), fala que o projeto de Caden e sua busca por uma redenção alegórica é “Artaud e Grotowski em tempo real.” (Em resumo, imagino que Artaud por como produz a vida da metafísica através do rito, e Grotowski em como as sensações e experiências metafísicas manifestam-se em corportalidade psicofísica).

No entanto, apesar de flertar com a “transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade” (ARTAUD, 1993, p. 10), não há a transcendência do sentido proposto por Artaud de romper a conexão entre as coisas e a palavra e “ultrapassar autor, ator e público” (VIRMAUX, 1978, p. 13–15). Na trama, o diretor da peça sente a necessidade utópica de restabelecer um sistema de signos pleno (de manter o elo do espírito santo entre sua vida e sua representação artística), que comunique e reatualize tudo (uma vez que não há comunicação sem técnica), porém, como no conto fáustico, a vida que ele cria foge do seu controle, ganha vida própria, como Golem, e livre-arbítrio. Como se o filho matasse o pai, como no mito em Édipo, como nós matamos a Deus e como estamos determinados a sermos sucedidos. Se Foucault (1992) já declarava o apagamento do autor, em função da leitura pessoal do leitor, isso se evidencia como destino inveitável e se intensifica: “O autor deve apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos” (p. 80). Falamos da premasia do nome.

Esse jogo ordenado de signos proposto pelo autor deve-se “menos ao seu conteúdo significativo do que à própria natureza do significante” (FOUCAULT, 1992, p. 35). Se, olhando para trás, nas vtragédias e comédias do anfiteatro grego já não houvesse espectador passivo, este está ainda mais, cada vez mais livre e autononomo. Para imergir, transitar e modificar a narrativa, construída coletivamente pelos eus-personagens. Como num jogo imersivo de realidade virtual com avatares livres para percorrer a arquitetura narrativa, o espaço tridimensional, e escolherem seus próprios caminhos, modificarem o próprio espaço.

A narrativa emerge como estrutura (e estruturante), nesse caso, da cópia, a reeprodução através da verossimilhança cenográfica, que conecta matriz e seu duplo, o lugar onde impera os jogos de cenas, a mise-em-scene como lugar do agora onde jogamos, um tabuleiro e da gamificação como lugar vivo do improviso, das ficções. Temos em evidência a questão da problematização do sujeito e como isso interfere na arte e na narrativa, e por conseguinte, na experiência do espectador, nas perdas de sentido inerentes às traduções e à transposição de uma realidade à seu duplo, perda essa que o emancipa como algo novo; que o leva à busca pela experiência plena, ou seja, ao desejo de transcender pela técnica a técnica. Deseja-se subverter o próprio organón do teatro como espaço para se habitar.

eXistenZ

Outro filme que explora a arquitetura narrativa, é o filme de Cronenberg, “eXistenZ”, sobre o teste de um novo jogo de realidade virtual, no qual o jogador interage com o tabuleiro da narrativa na forma de seu duplo, o avatar, representante de si próprio que entra no simulacro e confunde-se com o próprio corpo que habitamos de tão verossimilhante. Os jogos são realizados através de consoles feitos de tecido orgânico, em uma tecnologia transmutada em biocibernética, de carne e osso.

O filme precede avanços tecnológicos como o mapeamento do genoma humano, seu uso para produzir evidências em forensics, para reunir, fornecer e compreender dados sobre a história, mutações e imigrações humanas através dos séculos (um entendimento sobre o passado), a edição genética, já possível através da tecnologia CRISPR de edição de DNA que levou o Prêmio Nobel a Jennifer Doudna e que faz com que seja possível criar ratos de laboratórios bioluminiscentes feitos em laboratórios improvisados na garagem de uma casa de subúrbio e está agora a curar doenças de herança genética (logo, visando o futuro, preconizados outro filme relevante Gathaca, sobre superhumanos geneticamente projetados), e as atuais descobertas sobre o RNA como mensageiro que pode ou não ativar genes dormentes a partir de nossos estilos de vida e estímulos. Sem contar na clonagem da ovelha dolly há 25 anos atrás, ou avanços da terrível tecnologia nuclear que produziu a tragédia de Hiroshima, ou aceleradores de partículas, descobertas a nível subatômico e demais avanços na exponencial tecnologia quântica (computadores quânticos, cristais do tempo…) oucoisas simples e popularizadas como energia elétrica, sinais e dados transmitidos via satélite e wi-fi por frequencias de rádio (akin à telepatia) e demais descobertas cienfíficas que têm transformado nossa realidade, nossos paradigmas e nossas formas de ser, estar e interagrir no mundo.

Em eXistenZ, os personagens estão conectados através de cordões umbilicais penetrados em orifícios cortados cirurgicamente, com uma saída USB ligada a espinha dorsal (veja que nem fizeram uso do wifi, como não o fez a maior alegoria para os tempos atuais, o filme Matrix, que lançará novo capítulo esse fim de ano). Essses USBs podem ser colocados em shopping-centers como quem modifica o corpo com tatuagens e piercings. Flerta-se com a idéia de corpo biocibernético (SANTAELLA, 2003, p. 181–207) e do corpo ciborgue imaginado por Stelarc: “Talvez o futuro dos corpos seja um em que o próprio corpo se torne hospedeiro para suas máquinas e todas as tecnologias do futuro serão invisíveis, pois estarão inseridas no corpo.” (2009: entrevista virtual)

Durante o teste, a criadora do jogo, Allegra, está sendo perseguida por agentes, acusada de deformar a realidade. Ela conta com a ajuda de Ted Pikul, um homem que ainda não teve seu corpo atravessado pela nova tecnologia de inserção e que precisa fazê-lo para entrar no mundo virtual e ajudar Allega a salvar seu jogo. Eles tornam-se personagens de identidades fluídas em intercâmbio contínuo com a narrativa. “Quebre a sua prisão”, fala Allegra para um Pikul temeroso e prestes a entificar seu corpo. “Estou presa fora do meu jogo”, ela reclama ao dizer estar no level patético do corpo biológico. “A vida real parece um pouco irreal”.

“Não tenho certeza se aqui, onde estamos, é real”, diz Pikul após a experiência imersiva. “O que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria realidade real como uma entidade virtual” (ZIZEK, 2003, p. 25). Tudo ganha caráter de surrealidade. Essa última frase torna-se cada vez mais complexa quando percebemos que eles estão jogando um jogo dentro de um jogo. Mais uma vez, vê-se a evocação da problemática do sujeito que interage e funde-se com o hiper-real (e já não é isso o delírio interno de nossos pensamentos e sentimentos?).

O debate acerca do Desejo Faustiano de ultrapassar as limitações humanas e as barreiras espaço-temporais (SIBILIA, 2014, p. 59) intensifica-se quando descobrimos que o tema do jogo é uma luta entre os que proclamam morte ao realismo da vida banal (ou tornada banal sem seu aparato tecnológico) e os que os acusam de fazer um “pacto com o diabo” ao tentar deturpar a realidade. O antigo debate continua vivo, aquele entre íconolatras (adoradores de imagem) e íconoclastras (que destroem a imagem para não tomá-la pelo que representam); entre a rigidez do dogma e a experiência empírica; entre a reforma do cristianismo que fez com que Protestantes rompessem com a Igreja Católica. Velhas questões filosóficas, questões em aberto que vivem não porque não rigidos, mas pelo seu campo de contrate, pela dança e tensão que produzem.

No final, somos deixados na dúvida: “Ainda estamos no jogo?”

Ela

Já no filme Ela nos aprofundamos nas questões de interações entre sujeito e virtualidades — falamos de amor, afim de investigar como se desenrolam os afetos e os conflitos éticos e morais. O filme de Spike Jonze conta a história de um homem que vive num universo atravessado pelas tecnologias digitais. Após seu divórcio, Theodore, um escritor solitário, se apaixona e desenvolve um relacionamento afetivo com um sistema operacional dotado de subjetividade e inteligência artificial (AI, akin ao filme de Spilberg): ele está no plano real; ela, no plano virtual. Samantha, o sistema operacional dotado da voz de Scarlett Johansson (para evocar sua corporalidade), foi criada para ter sentimentos, por isso ela se comunica com ele através de sua voz. Ele possui corpo físico e está preso aos limites de aqui-agora; tempo-espaço, ela não.

A princípio, ela sofre por não "ser real" (o que é, depois disso tudo, ser real?) e poder tocá-lo e experienciar a vida humana táctil, que, para ela, inversamente, é uma imagem “virtual” vista por uma câmera. Com o tempo ela percebe sua imortalidade (e enquanto isso, vemos Theodore sentado atrás de uma gigante tela de propaganda de LCD em que a imagem de uma águia o pega com suas garras).

Dotada com “cérebro” de máquina, Samantha consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo, ler livros inteiros em nanosegundos, transita por bytes e dados, consegue se comunicar simultaneamente com milhares de pessoas e Inteligências Artificiais, está em todo lugar e em lugar nenhum. Seu redimensionamento de tempo-espaço é tão grande, que o tempo de interação com Theodore torna-se muito pequeno. As limitações tecnológicas; as palavras, o corpo e a própria técnica tornam-se limitações para uma existência plena. Samantha e os outros sistemas operacionais decidem ir embora para um plano menos limitado. Uma morte, talvez? Onde tudo e nada confundem-se? Somos deixados a imaginar para onde vão, se a plenitude não se dá no vazio, no aniquilamento, uma vez que ser, inevitavelmente, nos separa do todo.

Se o livre arbítrio, a libertação da virtualidade — potência — não é o mesmo que vontade. “Aquilo que é afetado pela morte é apenas a consciência, enquanto a vontade (…) está livre de toda condição determinada pelo tempo e, portanto, também é imortal.” (SCHOPENHAUER, 2013, p. 25).

É como se eu tivesse lendo um livro… e é um livro que eu amo profundamente. Mas estou lendo devagar agora. De forma que as palavras estão distantes umas das outras e os espaços entre elas são quase infinitos. (…) é nesse inacabável espaço entre as palavras que eu me encontro agora. É um lugar que não é o do mundo físico. É onde tudo está que eu nem sabia que existia. (Samantha, um sistema OS1, Ela)

Dollhouse

Dollhouse, série televisiva de Joss Whedon, produto da cultura pop disseminada em seruie televisiva, HQs e uma série de produtos de cadeia e universo expandido, nos apresenta outra perspectiva; a do controle das “subjetividades talhadas pela biopolítica” (SIBILIA, 2013, p. 187). Dessa vez, é o computador que invade o corpo. Na história, uma corporação poderosa compra vidas e programa corpos com habilidades, memórias, sentimentos, personalidade, todo o conjunto de características que compõem um indivíduo, e os aluga, fetichizados para o consumo.

Esses “bonecos” são programados com dados, apagados e reprogramados como flash drives. Corpos robotizados, dóceis e úteis à última instância, forças humanas treinadas, úteis para fins econômicos. Evidência de que “as corporações transnacionais constrõem o tecido fundamental do mundo biopolítico.” (HARDT, NEGRI apud SIBILIA: 2013, p. 191). Biopolítica, como colocado por Foucault; o poder que estatiza a vida e assegura a venda e manutenção de prazeres como estratégias de controle sobre corpos produtivos, que compoem uma estrutura de poder mantido por esses próprios corpos, agentes e vigias de sua clausura.

Echo, uma das “bonecas” programadas, tenta recuperar sua identidade originária, mas por um erro, acumula as outras identidades que absorveu ao longo do caminho. A série avança para um cenário pós-apocaliptico onde uma empresa tenta exercer controle sobre os corpos, e nautraliza a sobernaidade do governo (Facebook|Meta tocam um sinal?). Seus líderes, imortais, vampíricos; transferem-se para novos corpos jovens e saudáveis. A virtualização da subjetividade que se imortaliza em corpos ciborgues, intercambiáveis.

A alegoria mostra o neoliberalismo que se popularizou no capitalismo tardio dos anos 80, que vende a ideia de liberdade (ou podemos chamá-la de pós-liberdade?) como forma de iludir e pastorear homens, que compram suas identidades através do consumo estimulado por propagandas especificmente talhadas por algurítmos que por sua vez nos talham, nos neutralizam, nos castram.

Esses objetos são a denúncia e ao mesmo “prova empírica definitiva de que Hollywood opera de fato como um aparelho ideológico do estado.” (ZIZEK, 2002, p. 31) do controle, que “engole as forças vitais e recicla as resistências (…), chegando a convertê-las em slogans publicitários para vendê-las a bom preço no mercado.” (SIBILIA, 2013, p.193) Em que bases são fundadas as tecnologias digitais que têm moldado nossa subjetividade? Para as vias de que fins escusos e interesses sombrios, sinistros que estão à espreita, escondidos por trás da figura de líderes abomináveis, macabros, cartunescos, bonecos de pantomina feitos para nos distrair, para confundi-los com aquieles que controlam suas cordas? Cordas estas que estão em nossos membros, mãos, pés e cabeça. Que confundem-se com nós mesmos como os agentes da Matrix tomam os corpos e a subjetividade dos que controlam.

Quem somos nós? Somos o que achamos que somos? Pensem nos milhões de homosexuais que pemaneceram no armário, seus desejos escondidos a sete chaves, por acharem ser pecado mamar uma rola, fazer uma pederastiazinha, uma gostosa sodomização. Repriindo seus desejos, ficando doentes e se odiando, vivendo vidas vazias como bonecos esvaziados de vida, e dominados pela culpa de desejos recalcados, reprimidos, e logo, facilmente manipuláveis. “O preço da felicidade é permanecer o sujeito preso à inconstância do desejo.” (ZIZEK, 2003, p. 79). Podem essas bases que estabelcem a matrix que vivemos serem separadas de quem nós somos? Divergir por forma de dissenso nos jogar, solitários, às margens?

Quando se fala nas subjetividade que constroem as poéticas do espetáculo que nos servem de mandalas, arquétipos, mitologias, jogos simbólicos em que nos projetamos em questão, que áreas de saber e instâncias da praxis vital temos que considerar?

espetacularização de si,

Gesamtkunstwer A.K.A vias ao Meta-verso

Longe do domínio de um campo específico de linguagem, as obras artísticas abandonam seus limites e antigas arestas e lançam-se num híbrido transdisciplinar, que apoia-se na interseção de diversos códigos midiáticos de diferentes naturezas (performáticas, audiovisuais, artes plásticas, literatura, fotografia). Essas se manifestam de formas subjacentes e complementares e perdem cada vez mais seu sentido isolado. Suas interseções produzem novos campos de experimentações, novas lógicas, disposições, variações, sobreposições, fissuras e linhas de fuga, que horizontalizam a hierarquia das artes e reconfiguram a experiência do espectador (GONÇALVES, 2014, p. 11). O mesmo, com a quebra definitiva da quarta parede torna-se nômade, livre para redirecionar o olhar (e interagir) numa manifestação em 360° graus que foge à moldura; ele mergulha dentro dela, a paisagem torna-se sua arquitetura narrativa, uma que está livre para explorar.

O próprio conceito de performance e intervenção já denota uma mudança da função artística que invade o campo do real, quebrando seu simulacro, mesclando limites entre real e imaginário e trazendo o espectador para a cena; a narrativa invade o espectador. No mundo atual, palpável, os potenciais performáticos multiplicam-se através da transposição tecnológica para o espaço tangível, das virtualidades que invadem e realizam um reajuste de apreensão da vida táctil através de novos suportes (Realidade Aumentada): projeções, hologramas, sensores, gadgets, simuladores, atrações imersivas de parques de diversão (rides), o imperativo do 3D no cinema, os jogos eletrônicos e as revolucionárias impressoras que materializam planos virtuais.

Podemos citar especificamente as técnicas que moldam o corpo e transformam diretamente a experiência sensorial. Os tools, multiplicadores das funções motoras (mesmo uma simples tesoura), evoluíram e tornaram-se extenção do corpo. Ramificações do corpo-cyborg, sujeito ao aprimoramento e ao upgrade (SIBILIA, 2013, p. 13). Um híbrido de sujeito-objeto, entificado, que expande sua noção de self e sua maneira de lidar com o mundo. A tecnologia sempre esteve atrelada ao desenvolvimento evolucionário do corpo. A tecnologia é o que nos define como seres humanos. Não é um objeto alienígena antagônico, é parte de nossa natureza humana. Ela constrói nossa natureza humana. (Stelarc, início dos nos 90, entrevista para CTHEORY, Stanford)

Artista performático que trabalha com implantes e transformações tecnológicas em seu próprio corpo, Stelarc fala que através desse novo corpo atravessado, podemos expandir nossas sensibilidades e percepções. Ele fala das hibridizações do homem-máquina. Alega que nossos sentidos corporais são conectados à nossos cérebros, de forma que tudo se passa em nossa cabeça, e que nossos corpos pode ser plugados à extenções e modificações tecnológicas projetáveis que modificam as nossas sinapses. “O homem se revelara subitamente como uma criatura miraculosa, pois sua natureza continha todos os elementos capazes de torná-lo seu próprio arquiteto.” (SIBILIA, 2014, p. 13) Essas novas percepções geram novos paradigmas do mundo, novas esferas de realidade e pedem ajustes filosóficos.

No campo virtual, as possibilidades se multiplicam e nos deparamos com o inverso; dessa vez, é o espectador que virtualiza-se, invade a narrativa, que deixa de impor-se ao espectador e torna-se parte fundamental para a criação do contexto e das interações da estrutura das plataformas e interfaces interativas. Falamos então, de produção de realidade.

Num sentido primário à narrativa, mesmo ter um perfil numa rede social em vias de falecimento como o facebook sugere inserir-se nesse não-lugar virtual. Mesmo como espaço desterritorializado, este site tem um mapa, um funcionamento prático onde nos inserimos e nos situamos através de nosso perfil, que transpõe a experiência atual para a internet em um protótipo de avatar; representação virtual de nossa subjetividade, preferências, gostos, imagem; nosso corpo cibernético, que explora e se movimenta pela rede.

No âmbito virtual, podemos dizer que a estrutura narrativa é o Gênesis, remete à terra que Deus criou e ao livre arbítrio que deu aos homens para fazer suas escolhas e determinar seu próprio trajeto; as histórias dão lugar às possibilidades de experiências narrativas. O avatar surge como um desdobramento do sujeito, torna-se personagem, não apenas signo dele próprio, ele passa a representar algo (COHEN, 2002, p. 96), O ente-fictício, conecta a consciência que reside no corpo do mundo atual e seu símbolo digital abstrato. Em uma experiência extracorpórea, aquele que antes observa, agora se observa, transita, nômade pelo espaço volúvel, livre para interagir; “sua mente abandona o corpo para integrar-se no universo infinito e etéreo dos fluxos informacionais” (SANTAELLA, 2003, p. 190).

Esse híbrido persona-personagem vai tomando para sí caracteristicas cada vez menos homônimas à sua matriz, desprende-se do real num registro hiper-real sem precedentes. Seu eu-virtual tem liberdade de identidade fluída, acentuando as discussão acerca da identidade na pós-modernidade; quanto a sua suposta crise e ao deslocamento do sujeito, que torna-se fragmentado; composto por várias identidades sobrepostas, multiplas, intercambiáveis, que são transformadas em relação às formas pelas quais são interpeladas, “permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada” (HALL, 1992, p. 38).

A tecnologia da Realidade Virtual possibilita uma transgressão de fronteiras entre masculino-feminino, humano-máquina, tempo-espaço. O eu fica situado além da pele — não é uma desconexão ou divisão, mas uma extrusão da consciência. Ser humano não significa mais estar imerso na memória genética, mas estar reconfigurado no campo eletromagnético do circuito, no domínio da imagem. (STELARC. Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: A protética, a robótica e a existência remota.)

Ao habitar comunidades virtuais onde interagem com outros avatares que rompem os limites físicos das distâncias espaciais, esse conjunto de eus-fictícios torna-se agente da narrativa, co-criadores de uma obra aberta e dinâmica. Podemos exemplificar isso através dos games, pela interdisciplinaridade inerente a sua natureza interativa, imersiva e intersemiótica. Hoje em dia considerados “um gênero artístico por si mesmos, um campo estético único de possibilidades” (AARSETH in SANTAELLA, 2004).

Um gênero específico de game estabelcido a décadas, filhos dos jogos de tabuleiro, nos chama atenção, o MMORPG, ou Massive Multiplayer Online Role Playing Games, que se realiza na rede e constitui-se em comunidades virtuais de jogadores online, conectadas na base de interesses e afinidades. Essas cidades virtuais são construídas colaborativamente. Sua interatividade determina a narrativa, que desvanece e torna-se cada vez mais estrutura. A proposta de imersão faz com que a experiência de estar inserido na imagem, especificamente a tridimensional, transforme essa narrativa em arquiteturas a serem exploradas, que chamamos de arquitetura narrativa (JENKINS, 2014).

Esse aspecto do jogo como um medium o distingue de outras narrativas tradicionais, de forma que precisamos expandir o conceito de arte e de narrativa clássica, a começar pela quebra da linearidade em favor de uma narrativa espacial livre. (Vejam como isso nos remete as crises das polarizações atuais, que são as guerras pela narrativa oficial, e a crise proposta vela pós-verdade que multiplica a interpretação dos fatos e aniquila com os próprios fatos como referêncial, um outro tema a ser expandido que está profundamente intrínseco a esse debate).

Esses jogos não apenas contam histórias, mas criam mundos e esculpem espaços, enquanto as histórias são vivídas colaborativamente, eles são hoje a experiência mais completa de cruzamento intermidiático. No âmbito do atual que foi normalizado, integrado a vida, essa experiência pode ser comparada à atrações de parques de diversão como os da Walt Disney World, que recriam atmosferas fantásticas narradas em livros e animações. “O elemento da história é embutido no espaço físico no qual os visitantes passeiam. É o espaço físico que faz o trabalho de contar a história.” (JENKINS, 2014) São mundos paupáveis, em que é possível tocar, segurar, sentir o cheiro. Habitamos um mundo atravessado pela tecnologia transmidiática. É inevitavel o intercambio — e futura cisão — entre atual e virtual.

De volta ao pensamento da transversalidade midiática na arte, cada vez mais digital, encaramos a gameficação da arte como lugar inevitável para pensar o seu presente e futuro. Para o espectador significa sua ressureição como “participante ativo numa ação coletiva em vez de continuar como observador passivo.” (RANCIÉRE, 2007, p.3) O espectador emancipado observa fenômenos e procura entender suas causas, tem conciência de sua presença em oposição à ilusão de ótica da representação, apaziguando as questões platônicas contra a cena como lugar do artifício. Restaura a essência do espetáculo como cerimônia comunitária, sua entidade e dimensão ritualística. Ao espectador é devolvida sua autoconsciência e atividade, cercados pela cena, arrastados para o círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva. O teatro é uma mediação que se auto-suprime.” (RANCIÉRE, 2007, p. 5). O teatro pode estar na UTI, mas a verdade é que nós enstamos entrando no jogo de cena do teatro vivo ritualístico e monstruoso de Artaud.

Algo parecido pode ser dito (e tem sido dito aos montes) sobre a autoria. Como sabemos, só olhar o mundo já é uma forma de agir sobre ele e transformá-lo. O observador observa, seleciona, compara, interpreta. “Ele faz o seu poema com o poema que é feito diante dele.” (RANCIERE, 2007, p. 8). Segundo Foucault, que faz considerações sobre o autor e sua obra sem nem mesmo precisar estender-se para o campo das artes multimiáticas e atravessadas pelas virtualidades, “a escrita se libertou do tema de expressão: só se refere a si própria, mas não se deixa porém aprisionar na forma da interioridade; identifica-se com a sua própria exterioridade manifesta.” (FOUCAULT, 1992; P 35).

Essa exterioridade manifesta, que coloca-se diretamente nas mãos do espectador transmutado em interator, em personagem real, em co-autor, deixa difusas as fronteiras entre ator, espectador e autor. Literalmente, “a poesia deve ser feita por todos”(FOUCAULT, 1992, p. 71). O próprio ato da criação coletiva, manifestação tão comum no teatro contemporâneo, está a ser experimentada em seus limites, estando ao mesmo tempo sempre em vias de ser transgredida e invertida; a escrita desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras, desse modo as extravasando.” (FOUCAULT, 1992, p. 35)

Segundo Barthes, não existe outro tempo para além do da enunciação, todo texto é escrito eternamente no aqui e agora. O sujeito que fala não existe fora da linguagem, e está vazio fora da enunciação que o define.

“Linguagem é sistema, uma subversão direta dos códigos aliás ilusória, porque um código não se pode destruir, apenas podemos jogá-los” (BARTHES, p. 3).

Estamos subordinados aos caprichos da técnica, aprisionados no campo da virtualidade, possíveis por causa da técnica e da linguagem como técnica a ser manipulada (e prescrita no uso das mãos no surgimento do homo). Estamos presos na distância infinita com que a aura da coisa investe ela própria, mesmo estando muito próximo, instituída por uma ligação que quer estabelecer uma unidade plena, mas está fadada a uma separação inevitável (De novo, iconolatras x iconoclastras).

Da morte do autor à perda de sentido quando se comunica ou se traduz. É essa falta e essa busca incessante, a vontade de ser Deus, que nos impulsiona nos caminhos trágicos do desejo Fáustico de ultrapassar qualquer limite. Que nos direciona à arte como forma de fazer compreender — o que é isso que estamos vivendo?– a nossa subjetividade e tornar essa vida limitada, soburdinada, suportável. A questão em aberto, a falta de respostas, a filosofia viva é o âmago do impulso que coloca a vida em constante dança e movimento, essa ilusão inapreensível.

Quando perguntado sobre as relações entre arte e tecnologia, Stelarc nos responde:

Penso que arte é interessante quando gera mais perguntas do que às responde. Arte deveria ser a interpretação instável do mundo que abre-se para apropriações futuras que desdobram-se em direções inesperadas.

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