Ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio.

Erick Monteiro
9 min readSep 8, 2021
Tarsila do Amaral. A Lua. Óleo sobre tela. 1928.

Sete de Setembro. Faz-se noite no hemisfério sul abaixo da linha do Equador. É noite no recorte imaginário de terra chamada Brasil, mais ou menos delineada com base em um tratado assinado em Tordesilhas, em outro continente, outro hemisfério, por pessoas que faziam a partilha — a ética do saque só vale entre iguais — da terra outrora de outrem. Esse outro indefinido que não vos fala pois as fronteiras não são meramente linguísticas, mas dos intraduzíveis (para quem não quer entender) modos de ser e estar no mundo.

Dia desses, em um protesto, uma foto de um letreiro que iluminava a esplanada dizia: BRASIL TERRA INDÍGENA, porém o IBGE de 2010 afirma que apenas 0,47% da população brasileira atual é indígena. É muito fácil partir para a presunção de casi extinção para falar de povos indígenas com o descaso que nos aponta o fascismo Bolsonarista que os coloca como uma minoria de povos não civilizados. "É muita terra para pouco índio", ele diz, mas não nos enganemos. Onde estão os povos indígenas do Brasil?

Os povos indígenas do Brasil não se sabem indígenas, postos que não mais vivem como indios. Estão inseridos na miscigenação do povo, diluídos na massa de gente que compõe esse país. Na ancestralidade de cada um. Em nossas mitocôndrias. Em nossas linhagens maternas — avós, bisas, tatáras — que foram subjugadas ao longo das gerações por homens brancos. Os povos indígenas que não padeceram, como desejava Bolsonaro, já abandonaram, ao longo da história desse país, as Florestas para integrarem a sociedade e civilização civil que tem CPF mas presta serviços terceirizados a CNPJs que evadem direitos dos trabalhadores e pagam impostos.

Para além dos .47% que conseguiram conservar sua cultura e modos de vida de povos da floresta e estão vivos, ativos e vocais representados por intelectuais e ativistas como Ailton Krenak e Davi Kopenawa, os povos indígenas estão servindo a cidade em trabalhos mal remunerados, estão nas periferias e favelas, dormindo nas ruas e becos da cidade, cansados, abatidos e agora com fome. Estão, segundo a régua do censo, mesclados e confundidos na mais da metade da população de negros e pardos — quer palavra melhor para obliterar — outrorizar (otherize) — um grupo do que pardo, e delegar o índio ao remoto passado? Por essa lógica negros e índios são termos intercambiáveis, uma amálgama de pardos que fundem-se e confundem-se entre si. Basta ser de cor.

definição de outrem no dicionário.

Mas para além disso, os povos indígenas também estão diluídos no narcisismo-ao-revés das elites pseudo-brancas brasileiras, uma vez que o país tem uma história de miscigenação através das gerações no qual praticamente todos tem ascendência não-europeia. Vale salientar que o sul da Europa e a Península Ibérica que compõem o grosso da ancestralidade europeia na América Latina, por conta de seu histórico de trocas com as civilizações do Mediterrâneo, também não eram consideradas brancas pela mentalidade nazista e eugenista (sendo o germânico o suprassumo da branquitude e superioridade das raças).

Esses povos indígenas disfarçados não se reconhecem como tais no contexto global. Não se enxergam quando olham no espelho. Fingem que são brancos, enfeitiçados pelo mito da branquitude como raça — uma categoria da pseudo ciência que serve para distinguir o que de outra forma deveria ser arbitrário. São brancos em comparação com o mais escuro, mas mais escuro em comparação com os brancos.

Estão no fenótipo não europeu remanescente no nariz largo (afinado por rinoplastia), nas curvas acirradas de fios de cabelo (alisados), no bronze acentuado da pele (é apenas o sol dos trópicos). Estão também diluídos no mito da linearidade longínqua que diz: “Minha tataravó foi tirada da selva”, apenas para dizer que não, “não sou racista”. Como posso ser racista se tenho ali um antepassado indígena ou escravo? Que confusão se esconder e se entender nos conflitos de identidade e nos labirintos do entre-lugar entre isso e aquilo.

Modesto Brocos. A Redenção de Cam. 1895.

Os povos indígenas estão na frase cânone de Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Estão nas mãos inocentes de prece da avó escravizada (e construída, claro, na imaginação do homem branco) da Redenção de Cam. O quadro eugenista, que sonha um futuro melhor para seus descendentes. Um futuro branco e livre da "maldição" de ser negro. Um futuro onde não serve ser-se. Ser quem é. Numa realidade em que negro e escravo são sinônimos ( e que importante avanço dizer povos escravizados ao invés de escravos).

Os povos indígenas (e negros) são o one drop rule (conceito americano, traduzido regra-de-uma-gota) que maculam a ideia de uma pureza branca e que para sempre recortam a nós, latino-americanos de todas as classes e tons de pele, dos privilégios de ser branco no contexto geopolítico e nos delegam a uma segunda categoria: cidadãos de segunda classe intermediária de capitães do mato (quack!). Nem tão brancos para pertencerem ao clube VIP, mas definitivamente superiores a ralé. Reforça-se a ideia da comparação e da graduação do colorismo, o racismo relativo que nos coloca em posição de superioridade ou inferioridade a alguém. Que nos coloca em constante comparação e predatória competitividade. A engrenagem mór do pensamento pirata neoliberal, a irracionalidade da força tornada natural pela sociedade civil, a destruir a própria noção de sociedade.

O filho da casa grande e da senzala é protegido pelo pai em relação aos outros negros escravizados, no entanto não está na mesma categoria do filho legítimo, é para sempre o bastardo. Tampouco é similar ao irmão negro, uma vez que seu tom de pele mais claro e seu privilégio relativo o separa, mesmo que ironicamente partilhem mais de sua condição do que o sinhozinho. Este sente-se vítima de um ressentimento e ressente-se — o filho pardo, para ganhar aprovação e demonstrar lealdade ao pai, faz de tudo para agradá-lo. Renega suas raízes maternas, castiga as partes de si mesmo que o ensinam que ele é mau.

Esse relato, além de ser um dado majoritário da composição genética brasileira (no qual 2/3 das origens maternas são negras/indígenas e mais de 2/3 das origens paternas são Europeias), é de uma simbologia absurda. Denota a "miscigenação como origem de todos os males", o complexo de vira-lata. A característica própria que nos torna um país singular fundado por um trauma que é tornada pior arma contra nós mesmos, um golpe em nossa autoestima seguido de autosabotagem. Convertido em vassalagem pós-colonial. A tragédia oracular brasileira.

Os povos indígenas somos todos nós brasileiros, que sempre estaremos a sombra de uma ideal imaginário tornado concreto apenas por constante reafirmação autoproféica. Por crer e reproduzir a lorota racista. O que está em extinção não são os povos subjugados, uma vez que compreendemos raças como constructos e categorias arbitrárias de finalidade política e que a esses povos, que somos todos nós, foram atribuídas novas formas de serem subjugados (e tudo se inicia pelo discurso, veja bem). Estamos integrados na sociedade, nos porões de remadores de navios negreiros que movem a o barco para o benefício de poucos. Estamos nos degleadeando para chicotear os debaixo por uns míseros trocados dos de cima.

Clones.

O que está em jogo é o país que rejeita a si próprio, em aceitar-se e afirma-se na sua complexidade que demanda sim reparações histórica em forma de reconhecimento. O que está em jogo é o país que protesta em inglês com gramática errada dentro de casa e joga novamente para a vassalagem da aprovação externa. Eles falam para quem? O que está em jogo está circunscrito nas metanarrativas que usamos para pensar o que somos e que nos fazem delegar o índio a categoria de outro, quando o esse outro somos nós. As partes de nós que reprimimos nos tornam sujeitos recalcados, definidos por valores externos opressores, que ao adotar esses tais valores viramos nós mesmos os agentes Smiths que trabalham a favor e protegem a Matrix dos discursos e narrativas dominantes. Tornamos-nos nós mesmos opressores-oprimidos, nunca atingimos o pódio desejado. Depois ainda somos acusados de ter mágoa de caboclo.

"O recalcado se sintomatiza", dizia Freud. O nosso complexo de inferioridade expresso no Bolsonarismo é o sintoma de autodestruição ao qual nos condenamos por ignorar que estamos (e sempre estaremos) em dissonância com a imagem do pai europeu que cirurgia plástica nenhuma poderá ocultar.

O que está sob risco de extinção não são os povos ou filho dos povos, os escravos sempre foram essenciais para a construção da sociedade desda as pirâmides do Egito que atribuimos incredulos à seres alienígenas. O que está em risco de extinção são os povos indígenas sob a égide da liberdade e autodeterminação. A consciência de si próprio e de suas coordenadas no mundo.

O que está em risco de extinção é a memória, a cultura e os modos de vida dos povos da Floresta, as histórias e saberes de povos ancestrais que nos atravessam e do qual também descendemos. Povos que por milênios aprenderam a viver em harmonia e sustentabilidade com a natureza, um saber que se faz cada vez mais necessário frente ao processo de aquecimento global e destruição ambiental que já desmatou 1/3 da floresta amazônica e que se aproxima de um grau irreversível que contribue para o cataclisma global. Destino que apresenta-se cada vez mais inevitável na forma de desastres naturais. Outra tragédia anunciada para o qual nadamos em direção.

O sete de setembro é o delírios dos cegos em marcha ao abismo, que põem pólvoras nos canhões enquanto o navio furado está a afundar. A noite é longa e nela, como em "A Lua" de Tarcila do Amaral, só a lua resplandece. Quando está escuro, o céu da noite trata de iluminar pelo brilho sútil e desvanecido das estrelas, por trás das camadas espessas de nuvens que conservam a luz indireta e difusa em tridimensionalidade. Nossos corpos languidos conservam em si a água potável que resta e necessária para a sobrevivência em tempos escasos. Corpos que consomem-se, frente à ressurgida pobreza e fome, os próprios estoques de gordura. O rio do tempo mostra que a vida é finda, mas que há a vida das vidas nos desagues do abundante oceano, que se condensará nas vidas que hão por vir e que necessitam de proteção.

Ao invés de Antropofágicos, no qual o Brasil, parte e também aparte da cultura ocidental paternalista, canabaliza a cultura eurocentrica dominante (do qual os Estados Unidos também são produto, no entanto com status de filho legítimo) para produzir seu próprio senso de identidade e emancipação frente a cultura pós-colonial dominante, estamos em estado de Autofagia, comendo-nos por dentro.

A autofagia é conhecido como "mecanismos por meio dos quais uma célula em estado de desnutrição redistribui os nutrientes dos processos menos necessários aos essenciais." Diz o ditado popular que vão-se os anéis e ficam os dedos. Talvez seja essa nudês necessária para que paremos de brigar pelas sobras dos que nos saquearam e saqueiam (junto à nossa própria dignidade) e foquemos naquilo que é da fato essencial e nutritivo para que a vida seja possível. Uma vida harmônica, colaborativa, sustentável. O bem estar coletivo do planeta. Resistentes e resilientes cactos, tão em voga nos recentes trending topics brasileiros, convertidos e fortalecidos pelo reforço do estado imunmológico.

A obra "A lua" está em um museu em Nova Iorque, a capital do império de um sistema capitalista em colapso como um buraco negro que suga tudo ao redor– a vida mesmo de todo o planeta. Como diz Ariano Suassuna, ao redor do buraco tudo é beira. No MoMa, estamos expostos em vida como memória póstuma – epitáfio. A obra, recortada de nós e de nossa autonarrativa, delega o país do futuro ao futuro do pretérito. Porém cabe a nós, apropriar-nos de nossos próprios discursos e empoderar nossa autonarrativa. Criar! Contar nossas próprias históras. Onde estão os povos indígenas do Brasil?

Brasil é hoje, uma criação de tempo-espaço e amanhã já não é mais. Brasil é hoje, é agora, é pra já! Cabe a nós escrever agora e imperativamente o futuro do presente do indicativo.

"E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio"

VIRÁ! (VRÁ! Bicha, se valoriza!)

ps. o autor não é excessão as críticas, mas está em constante esforço de conciliação.

--

--